05/10/2009

A INQUISIÇÃO PORTUGUESA: TESTEMUNHOS E HISTÓRIAS

E a Inquisição através, principalmente, de três séculos, em Portugal, fez quanto lhe aprouve, coma cumplicidade da corte, tripudiando sobre toda a gente, ensopando a Pátria em sangue, cobrindo de atrocidades a Nação inteira.
Ninguém lhe escapava – uma vez que cheirasse a dinheiro aos inquisidores ou lhe fizesse ciúmes por seus merecimentos ou honras. Mesmo eles não descansavam de erguer, a grandes alturas, inculcas do seu poderio e grandeza, sendo um dos meios o saber-se por todo o Reino que eles tinham nos seus cárceres gentes de importância.
O Dr. António Baião director do Arquivo da Torre do Tombo, dedicou anos ao estudo da Inquisição em Portugal, Brasil e Goa. Nos seus estudos faz menção de vários processos da Inquisição, nos quais figuraram como réus vários homens de letras e de ciências de Portugal.
Entre outros, sem falar já do muito conhecido, caso de António José – o Judeu, foram condenados pelos inquisidores de Lisboa, Coimbra ou Évora, o cónego e poeta Baltazar Estaco, o Dr. António Homem, Fernando de Pina, filho do cronista Rui de Pina, o humanista e poeta Diogo de Teive, o matemático André de Avelar, o jurisconsulto Francisco Vaz de Gouveia, o engenheiro e inventor Bento de Moura Portugal, o Cavaleiro de Oliveira, o poeta dos Ratos da Inquisição, Serrão de Castro, o poeta Francisco Manuel do Nascimento, os netos de Pedro Nunes, que foi mestre do cardeal D. Henrique, de D. João de Castro e de D. Sebastião, etc.
Dois dos mais perseguidos foram o grande historiador Damião de Góis e o padre António Vieira.
Para se ter uma pequena dimensão do valor de Damião de Góis, bastará reproduzir as seguintes palavras do Dr. António Baião: “A sua personalidade é deveras complexa. Político, como feitor em Flandres, soube representar lá fora o nome português e granjear fama europeia; humanista, as suas obras e as suas cartas em latim podem pôr-se a par das melhores da Renascença; historiador, as suas crónicas são ainda hoje consultadas com proveito e o seu nome figura com a maior justiça entre os dos nossos melhores clássicos quinhentistas.”
Durante a sua ausência no estrangeiro exerceu missões de confiança junto do rei de Dinamarca, conviveu com Melâncton, Lutero e Erasmo, e frequentou as Universidades de Lovaina e de Pádua. Um belo dia, é surpreendido pela notícia de que o seu livro sobre costumes e religiões do rei da Abissínia, escrito em latim e impresso em Antuérpia, fora impedido de circular em Portugal. Queixa-se; o inquisidor-geral, ao tempo o cardeal D. Henrique, dá-lhe explicações, mas nem estas o satisfazem nem a Inquisição o esqueceu um momento mais.
Delatou-o depois o jesuíta Simão Rodrigues como discípulo de Erasmo, como luterano e até como disputando sobre a certeza da graça. Mas muito depois disso, o próprio cardeal D. Henrique encarregou-o de escrever a Crónica de D. Manuel, tendo sido nomeado guarda-mor da Torre do Tombo.
Em 1571, o próprio genro vem depor contra ele, já lançado nos cárceres secretos. Além das delações já feitas, comprometem-no também outras pessoas, incluindo uma sobrinha. Ele só pede que o despachem, porque está com mais de setenta anos, com nove meses de cárcere, sem forças para se ter nas pernas e cheio de usagre e sarna por todo o corpo!
Pede um livro em latim, para distrair o pensamento, pois está “apodrecendo de ociosidade”. Pois nem ao menos isso lhe concedem…
Finalmente, em Outubro de 1572, vinte meses depois de preso, e ao fim de dezoito vezes ouvido, leram-lhe a sentença, na qual os inquisidores o mandavam abjurar dos seus erros heréticos perante eles e o condenavam a cárcere penitencial perpétuo, no sítio para onde fosse mandado pelo cardeal D. Henrique. Saiu em Dezembro para o Mosteiro da Batalha. E assim, um homem de “reputação europeia” – como escreve o Dr. António Baião – esteve vinte meses humilhado em desespero atroz “à mercê de pigmeus de que a História só fala para os acusar das carnes inocentes que fizeram queimar.”
Em 1665, coube a vez ao padre António Vieira, preso nos cárceres da Inquisição de Coimbra.
Depois de denunciado por um colega seu da Companhia de Jesus e lente no Colégio de Santo Antão, Martim Leite, e pelo prior da Igreja da Madalena, Jerónimo de Araújo, foi encarcerado, sendo-lhe atribuídas culpas de judaísmo, por denúncias de Manuel Ferreira e do Dr. Fernão Sardinha, médico da Câmara de El-Rei, tendo este chegado a afirmar ter-lhe ouvido dizer “que para conservação do Reino era necessário admitir nele publicamente os Judeus.”
Foi interrogado em 21 de Julho de 1663, em 25 de Setembro do mesmo ano e em 20 de Outubro. Neste último interrogatório, segundo rezam os autos, citados pelo Dr. António Baião “…logo foi mandado pôr de joelhos e se persignou e benzeu, e disse a doutrina cristã, a saber: o Padre-Nosso, Ave-Maria, Creio em Deus Padre, Salve-Rainha, os mandamentos da Santa Madre Igreja – e terminal: e tudo disse bem!!”
E diz o Dr. Baião: “Ao padre António Vieira,, ao grande orador das coisas sagradas do século XVII, faziam-se na Inquisição perguntas aviltantes e deprimentes do seu extraordinário saber, das suas crenças tão enraizadas e fixas… Cinquenta e cinco anos de altos serviços ao País, cinquenta e cinco de tanta dedicação pela ciência, que o colocavam num lugar privilegiado, eram examinados –em doutrina cristã!”
Depois de 8 de Agosto de 1666, é interrogado em vinte e oito audiências!... E o Conselho Geral determinou que contra ele se procedesse – como contra pessoa de cuja qualidade de sangue não consta ao certo!!!
Em 23 de Dezembro de 1667, ou seja depois de vinte e seis meses de cárcere, foi proferida a sentença, contra o maior vulto de Portugal de então, conforme se exprime o ilustre autor dos Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa – privando-o para sempre de voz activa e passiva e do poder de pregar e o mandavam ser recluso no Colégio ou casa de sua religião que o Santo Ofício lhe assinasse, de onde, sem ordem sua, não sairia… e que por termo por ele assinado se obrigasse a não tratar mais das proposições de que foi arguido no decurso da sua casa, nem de palavra nem por escrito, sob pena de ser rigorosamente castigado!
É inacreditável!

Vejamos estas palavras do Dr. Baião: “Assim procedia a Inquisição com um religioso da Companhia de Jesus, teólogo, e mestre de Teologia, Pregador de El-Rei de Portugal, e ministro seu na Cúria Romana e outras cortes, confessor nomeado do Senhor Infante, superior e visitador-geral das missões do Maranhão com os poderes de seu geral, e tão benemérito da Igreja que durante dez anos se empregou na conversão dos gentios, tendo tido muitas e muitas vezes disputas com os hereges em França, Holanda, Inglaterra e noutras partes.
Assim se vexava, ultrajava e condenava, por instigação de seus émulos, o grande orador sagrado que na nossa história literária se chamou padre António Vieira!”