14/10/2010

O FUNDADOR DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA

D. João III – Depois da matança de 1506, a política usou de mais tolerância – e os judeus portugueses puderam, enfim, viver sossegados com D. Manuel. E apesar dos horrores de um passado, sempre recente pela agudeza das dores causadas, os Judeus não deixariam, durante os quinze anos que decorreram, até à morte do rei, de pedir aos Deus de Israel que desse a mais longa vida ao monarca português.
É que eles anteviam o perigo no filho que lhe havia de suceder e que desde menino se mostrava inimigo fanático e encarniçado da raça hebraica.
Assim foi. Morto D. Manuel, subiu Dom João III ao trono – com dezoito anos apenas.
Além do que era, nele, próprio de nascença, um espírito curto e fanático – dois factos haviam de ter pesado profundamente no carácter do piedoso rei.
Diz Frei Luís de Sousa que D. João, em pequeno, deu uma queda da varanda do Paço de Santos, tendo ficado bastante tempo sem acordo e sem fala e “com uma ferida na testa de que lhe corria muito sangue”.
Concordaram os historiadores em que esta queda devia ter mais ou menos afectado o cérebro do príncipe. Depois…aquele célebre desastre do casamento!...
O pai preparou-lhe o consórcio com D. Leonor, filha de Filipe I de Espanha e irmã de Carlos V; mas, pensando melhor, desfez-lhe depois o noivado e casou ele próprio com ela, em 1518. pode avaliar-se a dor que assombrou subitamente o ânimo do príncipe que, demais a mais, dera todo o seu primeiro amor à princesa. Sabe-se que até deram a D. Leonor como…parvo! Mas ele não o era tanto, que não visse a patifaria que o pai lhe fez!...
A mágoa cravou-se-lhe na alma, e em todo ele se via quanto o mau acto de D. Manuel o mortificava. Mas era só isso; apenas o traía a tristeza. Nem uma palavra, nem um acto, ele teve ao de leve, pelo qual o pai houvesse, por sua vez, de lhe fazer censura.
E tudo isso o fez “concentrando, recolhido, dissimulado”… sempre a morrer pela madrasta…
“Oh estranha pena fera!
Desditosa vida cara!
Oh quem nunca cá viera,
E com seu pai não casara,
Ou em casando morrera!”

Como dizia o Camões no auto de El-Rei Seleuco.
E, entretanto, levou vida de lágrimas e de fel!... Mas não cedeu!
Depois de morrer D. Manuel, ainda se falou e se tentou… mas D. João desposou a outra irmã de Carlos V, D. Catarina.
Auto-de-fé em Lisboa - de uma
gravura da
"História das Inquisições"
Todo ele passou a ser fervor católico, fanatismo fradesco, canibalismo intolerante, vendo um único inimigo a esmigalhar, a reduzir a cinzas – inimigo do rei, do País, do povo e sobretudo dos padres e da Igreja Romana: - o judeu, o cristão-novo – o herege.
Partiu dele, só dele, da trava espessa do seu coração, o impulso para a fundação do tribunal sinistro!
Já no tempo de D. Manuel, o povo, instigado incessantemente pelo frade, pedia já Inquisição à “espanhola”, contra os Hebreus, conversos – por serem eles, pelo prisma da ignorância desse mesmo povo e conforma afiançava a clerezia corrupta, autores de quantos males afligiam o cristão em particular e toda a nação em geral.
Em 1525, reunidos, já por motivo de falta de dinheiro, as Cortes em Torres Novas, os representantes do povo, ao passo que se queixavam dos abusos dos fidalgos, do clero e da Corte, vociferavam contra os cristãos-novos…
Torturas da Inquisição - Desenho
de Manuel Macedo.
Foi fácil dar satisfação ao povo, no seu ódio ao Hebreu. Num abrir e fechar de olhos, alapardou-se a Inquisição por Lisboa e outras terras; e, de súbito, em cárceres improvisados, lançaram-se amontoam-se amordaçam-se, enterram-se vivos, torturam-se os cristãos-novos, aos centos, aos milhares…
Foi fácil satisfazer ao ódio do povo – amassado no fanatismo bronco e selvático do padre, dentro de uma sociedade crapulosa!
Vinham dos vários sítios de onde aproavam as caravelas, escravos mouros e negros, apenas baptizados, mas sem que alguém tentasse ao menos incutir-lhes a fé. Viviam aqui em concubinato e aceitavam-se relações entre eles e as pessoas livres. Os seus filhos até à terceira ou quarta geração, ainda que fossem baptizados, eram marcados com ferro em brasa, como novilhos ou potros, para serem vendidos. E então as mães, para livrarem os filhos desse destino infame, abortavam ou iam mesmo até piores crimes. Sempre debaixo de maus tratos, cada vez mais neles crepitava o ódio. E como o baptismo lhes não trazia vantagem de alívio, recusam-no. Queimavam-nos, por isso, com tições acesos, ou com cera, toucinho e outras matérias derretidas…
Se o livre queria remir a consorte cativa, “o senhor opunha-se – escreve Herculano – e não raro a pretensão dava lugar a cena de violência e de sangue, ou a ser vendida a pobre escrava, para terras longínquas, quebrando-se assim, por um ímpio capricho, os laços que santificara a Igreja!”
Torturas da Inquisição - Desenho
de Manuel Macedo.
Os confessores revelavam os segredos da confissão… Em geral, os pregadores de púlpito buscavam apenas honras e dinheiro, lisonjeando os auditórios! – “Um dos males que afligiam o Reino – diz Herculano – era a excessiva multidão de sacerdotes… Disputava-se pelas aldeias, as missas, os enterros, as solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo. Os sacerdotes casavam clandestinamente. E como, por terem tomado ordens, ficavam fora da jurisdição civil, declinavam a competência dos tribunais seculares… As mulheres, para os salvarem, envileciam-se, declarando-se concubinas! Sacrificavam-se!... E muitos deles chegavam, depois desse sacrifício de tudo, que elas faziam por eles, a abandonarem-nas… rasgando assim… com o mais infame dos impudores, todos os laços santos, embora secretos…”
O povo! Mas o povo ignorava mesmo a religião. A religião e a moral era isto… num país “que se lançava nos extremos da intolerância e onde se pretendia conquistar o Céu com as fogueiras da Inquisição; num país que expulsava de si ou assassinava judicialmente os cidadãos mais activos, mais industriosos e mais ricos! Entre o clero secular sobretudo, pululava a imoralidade, a devassidão, a crápula…”
E D. João III levantava empréstimos por todos os modos, para cobrir a miséria em que o País caiu, depois que se renegou a politica de D. João II e a Nação se entregou, bêbada de prazer e de sangue, nas unhas da Igreja! Só o juro do dinheiro negociado na Flandres era um pavor! Chegou a exceder a importância do capital! Para se avaliar, o rei reuniu as cortes de Almeirim e pediu ao terceiro estado 200 000 cruzados. Deram-lhe cinquenta mil…
Era só para isto que D. João III reunia as cortes! E, tendo reinado, por fatalidade, trinta e sis anos, apenas as reuniu três vezes!
“Depois, mandou escrever cartas às pessoas abastadas do Reino, significando a cada uma com quanto desejava que concorresse.”
Uma vergonha! E era este o fundador da Inquisição. O que havia de ser o povo, no meio de toda crápula em que a nação se aviltava?!