11/04/2012

A LIBERDADE RELIGIOSA

A heresia não pode ser tolerada ao lado da religião católica, no mesmo reino. - Papa Pio V.
Os servos de Deus foram sempre vencedores, quando combatem com as armas de Deus, pela causa e culto de Deus -Roger Williams - The Bloudy Tenent of Religion, Cap. 67.
A heresia é um erro, a intolerância um pecado, a perseguição um crime. - Philip Schaff.
A LIBERDADE religiosa é fruto recente da cultura cristã. O princípio, como Paulo o enunciou, de que as armas da igreja não são carnais, mas espirituais, cedo se esqueceu. Da condenação a penas espirituais dos que renunciavam a seus ritos, a igreja passou a impor castigos físicos, a encarcerar os transgressores que lhe desobedeciam os cânones e até a aprovar sentença de morte, para o obstinado que persistisse na heresia e se opusesse à "fé católica".
1. A conduta da Igreja Primitiva.
- Com o aparecimento da heresia no seio da igreja, o horror a ela se desenvolveu e os heréticos eram tratados pelos escritores cristãos como sucessores espirituais de Simão Mago e agentes do diabo. A supressão da heresia, por parte da igreja, dentro dos seus próprios limites, era uma coisa; a punição dos dissidentes ou dos pagãos era outra. No período que precedeu a Constantino, imperador que se declarara cristão, a igreja não tinha poder para impor penas corporais; mas os seus escritores, no zelo pela pureza da doutrina cristã, ao escreverem contra as heresias, mostravam-se severos até a amargura na condenação dos que as professavam. Na Grécia a dissidência religiosa era considerada ofensa ao Estado - e uma das acusações que levaram Sócrates à morte, foi a de que ele era pregoeiro de novos deuses. Platão, na sua obra a República, punia os desvios da religião prescrita. A lei romana tolerava os cultos estrangeiros, mas somente até onde não colidissem com as tradicionais instituições do Estado; e quando Trajano, logo depois do ano 100, transformou em crime capital o fato de ser o indivíduo reconhecido como cristão, isso deu-se porque as reuniões parecia denunciarem uma organização secreta, com objetivos hostis à continuidade do Império. Entretanto, se bem que os cristãos professassem a lei do amor fraternal para com os correligionários cristãos, os únicos escritores que o demonstraram nos seus discursos sobre a liberdade religiosa foram Tertuliano e Lactâncio, que afirmaram ser a liberdade religiosa um direito inalienável da natureza. Seria deselegante sugerir que eles se teriam expressado diferentemente, se a igreja nos seus dias não estivesse submetida à perseguição e lutando pelo direito de existir. Toda honra lhes deve ser dada por sua humanidade e, como acreditamos hoje, por seus sentimentos cristãos em face dos direitos humanos.
Ainda bem não tinham sido abolidas, por Constantino, as leis contra os cristãos, e a aplicação de penas civis, tanto a heréticos como a população pagã, começava. Ário, tratado pela igreja como herético, foi banido pelo Estado. Sob os sucessores de Constantino - Teodósio e Justiniano - a prática dos ritos pagãos foi proibida e depois considerada como crime capital, sendo que os dissidentes das doutrinas cristãs ortodoxas eram punidos com a morte. Quando ocorreram as primeiras execuções de dissidentes cristãos, em 385, somente dois bispos cristãos se opuseram ao castigo. Os chefes eclesiásticos tratavam os heréticos com uma ferocidade de linguagem quase inconcebível. A uniformidade de ritual e o assentimento doutrinário excluíram o amor cristão e a humanidade. Os Concílios da Igreja Romana eram cenas de rancor pessoal e abuso ignominioso. Os excessos da maioria por vezes chegavam a violência física, terminando, como no caso de Flaviano, arcebispo de Constantinopla, em morte. Atanásio não poderia ter inventado, para os dissidentes arianos, epítetos mais anticristãos do que os que manejou, ao denunciá-los como politeístas, ateus, fariseus, mentirosos, cães, lobos, demónios. O tratamento dispensado aos pagãos, no trato diário, tinha exemplos, entre as melhores pessoas, de imperdoável descortesia. Gregório Nazianzeno, que não tinha muito a dizer em louvor da piedade e benevolência de Nonna, sua mãe, refere que ela jamais estendeu a mão ou disse uma palavra de saudação a um pagão. O papa Leão I, 450, defendeu a pena de morte aplicada aos heréticos.

2. A Teoria e a Lei medievais:
Antes de Leão I e cerca de 400, Agostinho, discorrendo sobre a parábola das bodas, baseou-se nas palavras - "Obrigai-os a entrar!" - para ensinar que a igreja tem razão para reduzir os heréticos pela força e para o uso de medidas violentas, tendentes a reconduzi-los ao acatamento das suas leis. As autoridades e os teólogos da Idade Média não só citaram o Padre norte-africano para o emprego de medidas de violência, mas consideraram as suas declarações como justificativas da pena de morte aplicada aos hereges, extremo a que ele não chegara. Indivíduos eram condenados à morte por discordarem do sistema doutrinário da igreja e guerras foram declaradas contra comunidades inteiras, contaminadas de heresia. Os príncipes cristãos foram chamados a reunir exércitos e marchar contra comunidades como a dos Cathari, do sul da França, sendo que agentes papais acompanhavam as tropas e regozijavam-se com as devastações feitas pela espada. Após ter pregado aos eclesiásticos rebeldes daquela região, S. Domingos predisse o recurso às armas, quando doutrinou: "Em vão vos tenho exortado por meio de pregação, oração e lágrimas. De acordo com um provérbio dos meus pais - quando as bênçãos nada conseguem, são de proveito os vendavais - levantaremos contra vós príncipes e prelados que, ai! - armarão nações e reis contra vós" - Cath. Hist. Rev., 1923, p. 90. Nesse mesmo espirito foi a guerra fomentada pelos papas e a Europa cristã lançou-se contra os sarracenos, que estavam de posse de Jerusalém: e testemunhas oculares do massacre que houve na cidade santa, narraram sem horror que o sangue dos massacrados correu pelas ruas e subiu, na área do templo, até a altura dos freios dos cavalos dos Cruzados.
Por decreto do Concilio Lateranense de 1215, no caso de o príncipe deixar de purificar os seus domínios da depravação herética, o pontífice romano pode dispensar os súbditos de tal príncipe das suas obrigações e distribuir as suas terras aos católicos fiéis. Que outro destino adequado, a não ser a morte, poder-se-ia inferir, quando Inocência III comparou os heréticos a escorpiões que feriam com o ferrão do inferno, ao verme oculto no pó, aos gafanhotos de Joel, ou quando assemelhou a heresia a um cancro rastejando secretamente à maneira da serpente? O poder civil foi compelido, pela teoria eclesiástica e, em certos casos, por especial intimação de pontífices, a tirar do mundo os heréticos. Por expedientes cerebrinos, os escolásticos justificaram semelhante política. Se eram executados os moedeiros falsos, muito mais o deviam ser os que corrompiam a fé. A heresia era tida como o pior dos crimes. A excomunhão e a privação das recompensas espirituais não constituíam suficiente castigo: Tomaz de Aquino concluiu que os heréticos não tinham direito à vida - meruerunt non solum ab ecclesia per excommunicationem separari, sed etiam per mortem a mundo excludi. Dante colocou os heréticos no lugar mais baixo do inferno; e, cem anos depois dele, o Concilio de Constança assegurou, em decreto formal, que os heréticos deviam ser punidos pela morte nas chamas - etiam ad ignem. Além disso, no ano da eclosão do movimento protestante, o Quinto Concilio de Laterão (http://pt.wikipedia.org/wiki/Conc%C3%ADlio_de_Latr%C3%A3o) tornara a desobediência ao papa crime passível de morte. Os poucos eclesiásticos medievais que ousaram erguer a voz contra a sanguinária política, foram tratados como rebeldes a Deus e à igreja. Quanto a tolerância religiosa, Marcílio de Pádua foi, segundo Lord Acton, mais longe em a recomendar a compreensão do que o foram os filósofos muitos posteriores - Montaigne e Locke. Condenando o emprego de força física para obrigar a conformidade religiosa, o italiano apelava para as palavras de Tiago 4:12: - Cristo é o único juiz que pode destruir e salvar.