11/07/2012

Onde Está a Tradição do Primado Nos Primeiros Três Séculos?

Nos primeiros três séculos não existe nem a idéia de um Primado romano

Mais uma vez lembro que esta não é uma história do cristianismo e, sim, tão somente dos homens que ocuparam o cargo de bispos em Roma.

Existe uma dificuldade muito grande em escrever este tipo de história que estou tentando redigir porque o historiador católico se esforça para justificar e defender a posição do bispo de Roma, interpretando e até forçando o sentido de situações históricas e de documentos que chegaram até nós, não na sua forma original mas através de citações.

Veja, por exemplo, o verbete "Papado" na Enciclopédia Mirador, edição 1980, página 8530: "São Clemente I escreveu carta aos Coríntios em 95 ou em 96; esta é uma das primeiras provas do primado romano".

Ora, isso só pode ser verdade para quem escreveu o artigo; para outros que gostam de analisar e investigar, esta é uma grande mentira, pois trata-se de uma verdade preconcebida.

Por causa disso, temos centenas de conclusões apressadas que distorcem os fatos e dificultam a pesquisa.

Para provar a existência do Primado romano nos primeiros três séculos, citam-se três bispos: Clemente romano, Irineu e Cipriano.

Clemente foi bispo em Roma de f, 88 a 97 d.C. e tornou-se famoso por uma carta que escreveu aos cristãos de Corinto ("Carta de Clemente romano"; Editora Vozes; Petrópolis; 1971). Quem nos fala desta carta é Eusébio em "História Eclesiástica" (IV; 23,11).

Eusébio, que morreu em 340, isto é, pouco mais de 200 anos depois, nos diz que o bispo de Corinto leu essa carta aos fiéis e depois guardou-a como preciosidade por ter vindo de Roma... Duzentos anos depois!! Eusébio nos relata este fato... sem provar!...

Irineu, bispo da Igreja de Lyon que dependia do metropólito de Roma, e morreu em 208, isto é, cerca de 100 anos depois de Clemente romano, deixou escrito em "Adversus Haereses" (III, 3) que Clemente foi o terceiro sucessor de Pedro em Roma, após Lino e Anacleto, e enviou uma carta aos cristãos de Corinto.

O que há de interessante nessa carta de Clemente? De interessante há que ele faz uma comparação entre o exército romano e os grupos dos cristãos: para serem invictos como o exército romano, os cristãos devem observar uma severa disciplina eclesiástica onde deve haver uma hierarquia com chefes e subalternos.

Com efeito, escreve Clemente, "os apóstolos estabeleceram bispos e diáconos e deram instruções para que, após a morte deles, outros homens comprovados sejam eleitos presbíteros da comunidade" (47,6; 54,2; 57,1).

A interpretação dos teólogos católicos é que esta carta é o primeiro documento comprovante da supremacia universal (o Primado) do bispo de Roma. No entanto os teólogos luteranos e outros protestantes (S. Jáki; "Les tendences nouvelles de 1'ecclesiologie"; Her-der; Roma; 1957) não vêem nenhum Primado na carta de Clemente.

Clemente não era o único bispo que mandava cartas ou relatórios a outros bispos, tanto em forma de consulta, como em forma de esclarecimento. Aliás, como podemos ler no "Curso de Teologia Patrística", de F. A. Figueredo (Ed. Vozes; 1983; pág. 67), Clemente não faz alguma distinção entre "epíscopoi" (bispos) e "presbiterói" (anciãos); por "presbiterói" ele designa bispos e diáconos.

É evidente que nessa carta o termo "episcopói" significa sorvelhante, supervisor, sem a conotação de pessoa "consagrada" para um ministério específico, em oposição a "leigos" que seria o povo cristão não consagrado (como interpreta I. de la Potterie em "Nouvelle Revue Théblogi-que"; LXXX; 1958; pág. 840 ss.).

Não se deve esquecer que muitos bispos, nesta época, escreviam cartas a outros bispos, Diniz, bispo de Alexandria, escreveu cartas; até aos bispos da Espanha, resolvendo questões disciplinares, que eram aceitas por outros bispos (-Fleury; "Hist. Ecles"; VII; 56).

O mesmo fez Gregório, bispo de Neocesaréia, no século III e Ba-sílio, bispo de Cesaréia; e suas intervenções eram aceitas pelos demais bispos.

Quando nos fins do século III o império foi dividido em: Oriente, Illíria, Itália e Gallia, constituíram-se os patriarcados de Roma, Antioquia e Jerusalém; mas cada bispo estava sujeito à assembléia dos bispos de seu patriarcado.

Mas a grande importância da carta de Clemente aos Coríntios, se não é a prova do Primado, como queria B. Bartmann no seu Tratado de Teologia (vol. II; pág. 425 e 483) e os demais teólogos católicos, está no fato que ele dá início à formação do presbiterado, como prova muito acertadamente Ernesto Renan ("História das
Origens do Cristianismo"; Lello Irmãs Ed.; Porto; vol. V; pág. 171). Essa carta de Clemente mostra que "a lei suprema da Igreja é a ordem e a obediência" (Renan; op. Cit.; pág. 177).

"A essa altura já se percebe que a comunidade dos fiéis pôs todos os poderes nas mãos dos anciãos ou presbíteros e o corpo presbiterial resumia-se num só personagem, o bispo; mais tarde os bispos da Igreja anulam-se diante de um só, que é o bispo de Roma. (...) A criação do episcopado é obra do II século; mas a absorção da Igreja pelos presbíteros é um fato consumado antes do fim do primeiro século".

Deste modo "o título apostólico é tudo; o direito do povo cristão é nada. (...) Previa-se que a Igreja livre como a concebera Jesus e como a admitia São Paulo, era uma utopia anárquica sem proveito para o futuro" (id. ib.; pág. 182).

É disso que trata a carta, mas não do Primado: este será uma conseqüência tardia da política de Clemente romano como tentativa de impor uma ideologia do poder.

Outro bispo que a Teologia católica aponta como defensor do
Primado romano é Irineu (130 -208), bispo de Lyon e portanto sujeito ao bispo metropolitano de Roma (nunca esqueçamos disto!). No seu "Adversus Haereses" (III; 3,2) escreve:

"Examinemos somente a Igreja mais antiga e por todos conhecida, fundada e estabelecida em Roma pelos dois gloriosíssimos apóstolos Pedro e Paulo e provamos que a tradição que ela recebeu dos apóstolos e a fé que pregou aos homens chegaram até nós por sucessão de bispos."

"Deste modo confundimos todos aqueles que por vanglória, cegueira, ou erro, formam seitas heréticas. (...) Todos devem concordar com esta igreja (de Roma) pela sua superioridade dominante (propter potentiorem eius principalitatem)"

Esta carta é um prato cheio para os teólogos católicos, mas não para os teólogos protestantes e nem para os católicos liberais.

Em primeiro lugar, há muita informação errada neste trecho. Primeiro: a Igreja de Roma historicamente não é a "mais antiga" e nem mesmo seria apenas "antiga". Segundo: não é historicamente provado que foi fundada por Pedro e Paulo; sabe-se que ela existia antes da chegada dos dois apóstolos.

Terceiro: "a fé que pregou": pregou quando? Como? Onde? Por meio de quem? São afirmações bombásticas para homenagear a Igreja de Roma que é (isto sim!) a "mãe" da Igreja de Lyon!!!

E, finalmente, quarto, a frase que deveria ser fatal: pela sua superioridade dominante que, traduzindo ao pé da letra significa: "por causa do seu maior poder", como se sabe, "potens,-potentis", em latim, se refere à força... força física, força militar.

Na língua latina não há exemplos de que esse adjetivo se refira à força espiritual! Logo, a Igreja estabelecida em Roma receberia seu poder justamente por estar em Roma, centro e capital do império... Logo, nada de Primado! Se de primado se trata, é o primado da capital do mundo do qual a Igreja romana compartilha.

E finalmente Cipriano, bispo de Cartago, que morreu em 258 d.C. e escreveu: "Como Deus é uno e uno é o Cristo, assim há uma só Igreja e uma só cátedra fundada sobre Pedro, pelo Senhor" (Ep. 43,5).

O problema é que nem no "De Unitate Eclesial" (número 4) Cipriano fala dos sucessores de Pedro. O que ele quer salientar é a necessidade de pertencer à Igreja, fora da qual não há salvação.

É dele a famosa frase: "Extra Eclesia nulla salus". Até o Bartmann (-vol. II, pg. 484) conclui: "Devemos todavia reconhecer que Cipriano não teve uma idéia exata do Primado". Aliás, não teve nenhuma idéia! O Primado é uma invenção muito mais tardia.

Algumas observações para concluir: Há a interpretação da Igreja africana: vejam-se as observações que Hirsh tirou do livro: "The conversations of Walines" de 1921-1925; há a interpretação do Luteranismo: vejam-se as conclusões de K.L. Schmidt e de Kattembush; há a interpretação de Hamack; há a interpretação dos "velhos católicos": veja-se o Langen; e há a interpretação da Igreja Católica que se baseia em Clemente romano e Irineu, ou seja, nos primeiros séculos... Tempo suficiente para a criação do mito.

Finalmente observamos que Clemente, Irineu e Cipriano falam em "Igreja" de Roma e não em "bispo" de Roma.


Continua na próxima postagem desta seção...


Autor: Carlo Bússola, professor de Filosofia na UFES

Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.


Observação: Mantida a formatação original em todos os artigos, apenas os destaques visuais são por conta deste site.


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