09/07/2012

A Roma Cristã e seu poder estão fundamentados sobre a Roma pagã


Atenção, leitor! Esta obra que estou começando a escrever não é Histó­ria do Cristianismo ou História da Igreja cris­tã, mas tão somente a história dos homens que ocuparam o cargo de bispos na cidade de Roma. Vou falar de homens e de sua ideologia do poder. Só.

Nos casos específicos dos bispos de Roma chamo de ideo­logia a interpretação que os mes­mos fizeram e fazem de uma si­tuação religiosa que tem um as­pecto social e político.

Essa interpretação acontece a partir de uma evolução histó­rica para a qual confluíram elementos políticos, morais, religio­sos, filosóficos e econômicos que implicaram numa tomada de posição, de modo que em primeiro lugar foram elaboradas doutrinas para justificar aquela interpretação e, em seguida, foram tomadas as medidas que se julgara necessárias para a realização do sonho interpretativo de situação já programada, para realizá-lo com referência ao poder.

Neste caso, a "ideologia do po­der" é o sonho espalhado no gran­de círculo eclesiástico romano que justifica, sob a luz da religião, todos esses elementos políticos, econômicos, morais e religiosos de uma supremacia (ou ditadura) papal.

Por "poder" aqui entendo aquele aspecto da faculdade da vontade que quer colocar-se acima dos outros para dominá-los ou física, ou política, ou economicamente, sempre, po­rém, sob o manto da religião.

Noutras palavras: poder, enquanto tal, significa capacidade de dominar. Por isso, neste caso, ideologia do poder é o sonho de domínio que usa da religião para estar acima do bem e do mal, seja político ou eco­nômico.


Deste modo, a ideologia do po­der se torna, num certo momen­to, o substrato de toda uma men­talidade. Seria o caso de falar do inconsciente coletivo que se reflete no inconsciente indivi­dual dos bispos de Roma.

Para Sto. Agostinho, só pa­ra citar um dos grandes respon­sáveis desta ideologia, "o Es­tado justo deveria ser aquele em que a verdadeira religião é mantida pela lei e pela autori­dade e nenhum Estado pode­ria ser justo a partir do adven­to do cristianismo, a menos que não fosse também cristão". (G. Sabine; "História das Teorias Políticas"; Ed. F. de C; RJ; 1964; pág. 198).

Em todos os próximos arti­gos só tratarei da ideologia do po­der dos homens que foram bis­pos em Roma. Se, a um certo momento, estes homens deram ao seu cargo de bispos um cunho universal é porque os homens que ocupavam este cargo com­partilhavam de uma ideologia que, embora não fosse da essên­cia do cargo, quiseram enxertá-la no mesmo cargo.

O que mais impressiona o his­toriador é que nunca foi escrito algo com referência direta e ex­clusiva a este assunto. Todos os historiadores misturam a vida política do bispo de Roma com a história da vida cristã no Oci­dente, de modo que vida cristã e vida papal se fundem.

Sem contar que muitos his­toriadores colocam um manto so­bre o assunto para que o leitor não entenda nada.

Por exemplo: "A Reforma na Idade Média" de Brenda Balton (Edições 70) só diz à página 20: "A Igreja tornara-se negligente e mundana". E George Duby em "O Ano Mil" (Ed. 70) nem fala da vida pessoal dos papas ou de sua ideologia do poder...

E é justamente o ano 1000 que é o mais importante para este assunto! Quanto ao famoso Daniel Rops, nem se fale! Aliás, no meu modo de ver, ele con­funde papado e cristianismo.

Vou agora dar o nome dos prin­cipais historiadores e suas obras das quais me servi para este tra­balho. Em primeiro lugar, Maurice Lachatre: "História dos Papas, etc."; tradução de A. J. Vieira; Ed. Mestre Popular; Lisboa; 1895. São cinco enormes volumes que eu consegui de uma uni­versidade portuguesa, quando eu era assessor do reitor da Ufes, Dr. Manoel C. S. de Almeida.

20 Duplessis-Mornay; "Mis­térios e Iniqüidades da Corte de Roma". 30 Sto. Irineu, bispo de Lyon; "Demonstração e Refutação da Falsa Gnose". 40 Eusébio, bispo de Cesareia; "História Ecle­siástica" e também; "A vida do bem-aventurado Constantino”.

5°: Anastásio o Bibliotecário (da Igreja romana). 60: João de Sa-risbury; "História Pontificalis". 7°: Johannes Burchard, bispo ale­mão; "Diarium" (sobre Alexan­dre VI e sua época).

80: Flaccius Illyricus, teólogo protestante; "História Ecclesiástica per Centúrias". 90: Luis Mainburg, padre jesuíta. 100: Claude Fleury, padre e escritor francês; "Histoire Eclesiastique" em 20 volumes. 11°: G. D. Mansi, arce­bispo de Lucca na Itália; "Acta Conciliorum" em 31 volumes.

12°: Pierre Bayle, professor de Teologia; "Dictionnaire Historique et Critique". 130: J.J.I. von Döllinger; "Der Papst und das Konzil" e "Die Papstfabeen des Miltecalters". 14°: L. von Pas­tor; "História dos papas desde o fim da Idade Média": 16 volu­mes.

Alguns desses livros eu guar­do xerocados, já que não se en­contram mais. De outros, tenho as notas, em velhos cadernos ama­relados, que eu fazia nos sába­dos e nos domingos na época em que, jovem estudante de Fi­losofia e Teologia, eu era chefe da Biblioteca Teológica e, portan­to, guardião das chaves dos "li­vros proibidos".

Resta-me agora uma pergun­ta: por qual motivo houve (e tal­vez ainda haja) uma ideologia do poder radicalmente contrária à mentalidade e à pregação de Je­sus Cristo assim como aparece nos evangelhos (se é que os evangelhos retratam fielmente o pen­samento d'Ele...).

Parece-me que o mito de su­premacia da Roma eclesiástica se baseia em quatro pontos: 1o Roma "caput mundi" (cabeça do mundo) com 20 seus divinos imperadores que também eram 3o "summi pontífices"; e final­mente a crença que 40 São Pe­dro tenha sido bispo de Roma.

1) "Roma caput mundi", co­mo se dizia então, isto é: cabeça e centro do mundo. De fato, por mais de mil anos antes e depois de Cristo, Roma era a capital do império. Era o centro político de uma estratégia muito séria, ao ponto que abstraindo da Roma material, foi criado o conceito de "Dea Romaria” (a deusa Roma) que estaria vivendo espiritualmen­te na Roma material.

Este fato político era tão sério que quando os povos helenizados das províncias romanas orientais quiseram divinizar o imperador Augusto, ele só admi­tiu o culto à sua pessoa conquan­to que fosse ligado ao culto de Roma. Mircea Eliades em "His­tória das crenças e das idéias religiosas" explica isto muito bem.

Ora, pensavam os bispos cris­tãos de Roma, do mesmo modo que o culto do imperador e o cul­to de Roma unificava o impé­rio, assim, agora, o culto ao vi­gário de Cristo e o culto à cida­de de Roma, quase toda cristã, unificará o Cristianismo.

2) "Seus divinos imperado­res": divinos, por causa da Deu­sa Roma. É ainda Mircea Elia­des (op. cit.; Zahar; 1978; T. 1; v.l;pg. 116) que nos relata quais e porque os imperadores roma­nos foram proclamados deuses: Júlio César; Augusto (27 a.C. -14 d.C); Cláudio (41 d.C.); Vespasiano (69-79); Tito (79-81); Adriano (117-138); Antonino (138-161); Marco Aurélio (161-170); Cômodo e Galliano.

3) "Pontífices Maximi" (su­mos pontífices): o II rei de Roma, Numa Pompílio (715 - 672 a.C.) organizou a religião dos roma­nos e fundou o colégio de cinco sacerdotes dirigidos por um su­mo pontífice cujo cargo chegou a ser de tanta importância junto ao povo e aos nobres que os im­peradores o reservaram para si.

A partir de então estavam jun­tos, numa só pessoa, a política e a religião e deste modo era mais fácil conseguir a obediência to­tal e completa do povo. Foi a partir desta idéia que nas­ceu a ideologia eclesiástica do poder: poder religioso e políti­co.

4) São Pedro bispo de Roma: verdade ou mentira, o fato é que a idéia pegou. O primeiro a nos dizer que Pedro esteve em Roma foi Eusébio, que morreu 303 anos após a morte de Pedro (67 d.C.)!!! Mas ele diz ter aco­lhido testemunhos de Sto. Iri­neu, bispo de Lyon (que morreu 136 anos após Pedro!!); de Cle­mente de Alexandria (que mor­reu 146 anos após Pedro!!) e de Papias (que morreu 207 anos após Pedro!!)... É pura tradição: veja meus artigos números 541, 546, 547, 539.

Verdade ou mentira, a idéia pegou e serviu muito bem à ideologia do poder eclesiástico roma­no.

No fim da obra colocarei um núcleo sintético de pesquisas com referência aos "passos" dados pe­los bispos de Roma para alcan­çar o poder e um resumo da evo­lução jurídico-teológica da ideo­logia eclesiástica do poder, a par­tir do começo até Bellarmino e Suarez, ambos jesuítas.

Continua na próxima postagem desta seção...
Autor: Carlo Bússola, professor de Filosofia na UFES

Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.