13/08/2012

"Mors Tua Vita Mea"

Sobre as cinzas do império romano, nasce e cresce o poder político do bispo de Roma

“Mors tua vita meã” (era necessária a tua morte para que eu pudesse ter yida). Nunca um ditado semítico (aliás, também bíblico) expressou tão bem a sorte do cristianismo romano: foi necessário que o império político romano morresse, para que, de suas cinzas, nascesse o império eclesiástico romano, isto é: foi necessário que os bárbaros invadissem o império e a província da Itália e que Constantino transferisse a capital para Bizâncio para que, desta dupla situação, se aproveitasse o bispo de Roma e realizasse novos passos em direção ao poder político eclesiástico.

Três acontecimentos que mudaram a história do mundo: os bárbaros invasores; a conversão de Constantino; Bizâncio, a nova Roma.

Gibbon, que muitos apontam como o maior dos historiadores, em "Decline and Fall of the Roman Empire" (Ev. Library; v.I; pág. 274) sustenta que a causa da queda de Roma foi o cristianismo, que teria destruído a velha fé, que dava caráter e vitalidade à alma romana...

Ora, nunca foi dita besteira maior! A verdade é que o cristianismo cresceu com tanta rapidez justamente porque Roma estava morrendo! Estava morrendo porque o Estado romano defendia os ricos contra os pobres; fazia guerras para obter escravos; punha taxas exorbitantes sobre o trabalho, para sustentar o luxo dos "patrícios".

Porque nunca soube proteger o povão (que era cerca de três quartos da população) contra a fome, contra a peste e as invasões dos bárbaros.

Se o cristianismo teve tão grande número de prosélitos e tão depressa, é porque era um seguro de vida na pobreza, na doença e na morte. (Veja: E. Fromm; "O dogma de Cristo"; Zahar. Ed.; Rio; 1978; todo o capítulo II e III).

Nunca os romanos haviam encontrado tanto respeito e tanta segurança, inclusive a segurança de um pão... como no cristianismo. (E será por causa disso que o povo romano não dará grande importância às imoralidades de seus bispos e padres!).

As causas económicas do declínio de Roma aparecem de maneira trágica com Diocleciano: a falta de novos escravos para os latifúndios que se tornavam improdutivos; o tráfico, sempre mais perigoso, prejudicava o abastecimento, com a consequente perda de mercadorias e de mercados; guerra sem fim entre ricos e pobres; o enorme custo do exército, cujos soldados não sentiam mais o gosto das vitórias, pois andavam cansados de décadas a fio de lutas inúteis; a inflação da moeda e a emigração do capital e do operariado; o sistema servil e escravocrata da agricultura e a eterna e enorme burocracia, sem falar da desintegração moral, que começou com a conquista da Grécia e foi crescendo até os dias de Nero.

Se houve uma melhora na moral romana, isto se deve à influência do cristianismo. Não foi por acaso que os cristãos romanos eram tão rígidos quanto ao sexo e ao casamento.
As ideias de Gibbon já estão há muito superadas! Veja: R. Mc Mullen: "Paganism in the Roman Empire"; Yale; 1901; passim. Veja também: P. Veyne: "Le pain et le cique"; Ed. Du Senil; Paris; 1976. Veja também: W. Lecky: "History of European Morais from Augustus to Charle-Magne"; Londres; 1869. Veja também A.H.M. Jones: "The later Roman Empire"; Ox¬ford; 1964; sobretudo o II volume.

O mesmo Will Durant, grande admirador de Gibbon, além de não concordar com o mesmo Gibbon conclui: "As causas políticas da decadência do império romano enraizavam-se num fato: o crescente despotismo destruía o senso cívico dos romanos, estancando o estadismo em suas fontes" (História da Civilização"; vol. VI; pg. 361, epílogo).

Então cita Montesquieu: "Patriotismo e religião pagã nasceram e cresceram juntos e, agora, juntos morriam". ("Grandeur et decadence des Romains"; Paris; 1924; pg. 36).

Essa digressão foi necessária, porque uma coisa é o cristianismo como mensagem de Jesus; e outra coisa é o cristianismo como meio para alcançar o poder político.

Constantino se apercebeu logo que o cristianismo, enquanto mensagem de Jesus, era algo de sério... tão sério que ele preferiu receber o batismo poucas horas antes de morrer, para não ter que submeter-se a uma moral tão rígida...

Mas, enfim, no ano de 330, ele levou a capital para Bizâncio, onde fundou Constantinopla, que se tornou o ponto estratégico de onde ele poderia vigiar os movimentos das hordas dos bárbaros que faziam pressão nos confins do império.

Todavia, ninguém pense que os bispos de Roma, com seus padres, fossem pessoas humildes e pobres. O historiador pagão Ammiano Marcelino, de origem grega (330-400 d.C), considerado o continuador de Tácito e o único historiador crítico da sua época, em seus "Rerum Gestarum Libri XXXI" (trinta e um livros de feitos) escreve a propósito do bispo de Roma e de seus padres:

"Eles têm vida boa porque se enriquecem com os donativos das damas importantes e exibem suas riquezas com trajes de requintes, oferecendo jantares tão copiosos que seus banquetes eclipsam a mesa dos reis e, no entanto, poderiam realmente ser reverenciados, sem ter como desculpa a grandeza da cidade de Roma. Mas eles alegam a grandeza de Roma como desculpa de seus vícios e preferem isto ao fato de viver como certos bispos de província que, pela extrema simplicidade no beber e no comer e pelas vestes modestas e atitudes humildes, agradam ao Deus eterno como homens puros e veneráveis". (É o poder económico que sempre precede o poder político: este já está às portas).

S.M. Pellistrandi em "O Cristianismo Primitivo" (Ed. Ferni; RJ; 1978; pág. 345) escreve: "Observemos os celebrantes bem no fundo da nave da igreja. Os diáconos vestem por cima das túnicas a dalmática com longas mangas debruadas e galões escuros como os de hoje. Além disso, a tonsura e as sapatetas negras que usam todas as pessoas de categoria. Sobre a dalmática, o bispo veste a ampla casula e, sobre ela, o pálio, que é o manto do comando. Trajados desta maneira e rodeados do conforto, adquirido através da proteção dos imperadores, dos poderosos e da generosidade dos ricos, os membros do clero muitas vezes provocam inveja".

O autor deste trecho conclui, à página 348: "Pois que o luxo e a corrupção invadiram a antiga cidadela da Igreja primitiva. Todos aqueles que querem viver o ideal heróico de outrora começam o êxodo para o deserto. Nesse retorno às fontes, os monges do deserto substituem um martírio tornado impossível, pela renúncia e pela mortificação".

O monasticismo aparece no Egito, com António, nos meados do século IV, justamente quando o bispo de Roma procura uma entrada para o poder político que não tardará a vir.

Mas há também uma lenda, que diz que, na hora em que Constantino doou o palácio do Latrão a Silvestre, bispo de Roma, juntamente com alguns pedaços de terras, veio do céu uma voz que disse: "Hoje entrou na Igreja o veneno!". Mas Silvestre estava disposto a beber o veneno, mas não a perder uma oportunidade política tão preciosa.

Com Constantino em Bizâncio, a Itália ficava nas mãos do bispo de Roma. Não é exagero. Com Constantino, a jurisdição episcopal diocesana entra numa nova fase: sob a forma de "episcopolis audientia".

Isto significa o seguinte: em 318, Constantino reconhece a jurisdição episcopal em questões civis, no âmbito estatal ("Código de Teodósio", 1, 27, 1).

Mas, antes de examinar este fato tão importante, vejamos o fim da história de Constantino e a história de Teodósio e Justiniano, os três imperadores romanos que mais se comprometeram com o cristianismo.

Constantino recebeu o batismo com a idade de 67 anos, em 337, quando estava para morrer. Então, houve uma série de imperadores inúteis. O mais importante foi Teodósio (347-v; 395), que, em lugar de combater os bárbaros invasores, quis aproveitar-se dessas forças e deixá-los instalar-se no império como federados, ou como soldados no exército romano.

Teodósio tomou o partido do Concilio de Nicéia e quis continuar a política de Constantino com referência ao cristianismo. Aliás, fez muito mais: inseriu a hierarquia eclesiástica nos quadros civis (381).

Então aconteceu a verdadeira mudança na história do império e do cristianismo. A ideologia do poder eclesiástico agora tinha feições políticas.

Com a morte de Teodósio, o filho Honório se tornou imperador do Ocidente (395-423) e o filho Arcádio imperador do Oriente.
Mas Honório se mostrou incapaz de frear as invasões dos bárbaros. Primeiro, Alarico, depois Genserico e Átila, que foram, enfrentados não pelo imperador e seu exército, mas pelo bispo de Roma Leão I (440-461).
Outro imperador romano foi Justiniano (482-565), que, para agradar ao bispo de Roma Felix IV (525-530), mandou fechar, em 529, a última escola de Filosofia livre de Atenas. De agora em diante, só é permitido o comentário da Bíblia e dos evangelhos feito pelos eclesiásticos. A Igreja e o império não precisam de filósofos, de gente que pensa; mas de gente que obedeça.

O conhecimento não será mais racional, mas fideísta. É a partir disso que os intelectuais se revoltam. É a partir dessa época que encontramos as raízes do ateísmo moderno: um subproduto do cristianismo político.

Continua na próxima postagem desta seção...

Autor: Carlo Bússola, professor de Filosofia na UFES


Fonte: Publicado originalmente no jornal “A Tribuna” – Vitória-ES, numa série sob o título “Os Bispos de Roma e a Ideologia do Poder”.


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