22/01/2015

Um Povo que Difunde Luz - Whiclife

Por entre as trevas que baixaram à Terra durante o longo período da supremacia papal, a luz da verdade não poderia ficar inteiramente extinta. Em cada época houve testemunhas de Deus - homens que acalentavam fé em Cristo como único mediador entre Deus e o homem, que mantinham a Escritura Sagrada como a única regra de vida, e santificavam o verdadeiro sábado. Quanto o mundo deve a estes homens, a posteridade jamais saberá. Foram estigmatizados como hereges, impugnados os seus motivos, criticado o seu caráter, e suprimidos, difamados ou mutilados os seus escritos. No entanto, permaneceram firmes, e de século em século mantiveram a fé em sua pureza como sagrado legado às gerações vindouras.
A história do povo de Deus durante os séculos de trevas que se seguiram à supremacia de Roma, está escrita no Céu, mas pouco espaço ocupa nos registros humanos. Poucos traços de sua existência se podem encontrar, a não ser nas acusações de seus perseguidores. Foi tática de Roma obliterar todo vestígio de dissidência de suas doutrinas ou decretos. Tudo que fosse herético, quer pessoas quer escritos, procurava ela destruir. Expressões de dúvida ou questões quanto à autoridade dos dogmas papais eram suficientes para tirar a vida do rico ou pobre, elevado ou humilde. Roma se esforçava também por destruir todo registro de sua crueldade para com os que discordavam dela. Os concílios papais decretavam que livros ou escritos contendo relatos desta
natureza deviam ser lançados às chamas. Antes da invenção da imprensa, os livros eram pouco numerosos, e de forma desfavorável à preservação; portanto, pouco havia a impedir que os romanistas levassem a efeito o seu desígnio.
Nenhuma igreja dentro dos limites da jurisdição romana ficou muito tempo sem ser perturbada no gozo da liberdade de consciência. Mal o papado obtivera poder, estendeu os braços para esmagar a todos os que se recusassem a reconhecer-lhe o domínio; e, uma após outra, submeteram-se as igrejas ao seu governo.
Na Grã-Bretanha o primitivo cristianismo muito cedo deitou raízes. O evangelho, recebido pelos bretões nos primeiros séculos, não se achava então corrompido pela apostasia romana. A perseguição dos imperadores pagãos, que se estendeu mesmo até àquelas praias distantes, foi a única dádiva que a primeira igreja da Bretanha recebeu de Roma. Muitos dos cristãos, fugindo da perseguição na Inglaterra, encontraram refúgio na Escócia; daí a verdade foi levada à Irlanda, sendo em todos estes países recebida com alegria.
Quando os saxões invadiram a Bretanha, o paganismo conseguiu predomínio. Os conquistadores desdenharam ser instruídos por seus escravos, e os cristãos foram obrigados a retirar-se para as montanhas e os pântanos. Não obstante, a luz por algum tempo oculta continuou a arder. Na Escócia, um século mais tarde, brilhou ela com um fulgor que se estendeu a mui longínquas terras. Da Irlanda vieram o piedoso Columba e seus colaboradores, os quais, reunindo em torno de si os crentes dispersos da solitária ilha de Iona, fizeram desta o centro de seus trabalhos missionários. Entre estes evangelistas encontrava-se um observador do sábado bíblico, e assim esta verdade foi introduzida entre o povo. Estabeleceu-se uma escola em Iona, da qual saíram missionários, não somente para a Escócia e Inglaterra, mas para a Alemanha, Suíça e mesmo para a Itália.
Roma, porém, fixara os olhos na Bretanha e resolvera pô-la sob sua supremacia. No século VI seus missionários empreenderam a conversão dos pagãos saxões. Foram recebidos com favor pelos orgulhosos bárbaros, e induziram muitos milhares a professar a fé romana. O trabalho progredia e os dirigentes papais e seus conversos encontraram os cristãos primitivos. Eloquente contraste se apresentou. Os últimos eram simples, humildes e de caráter, doutrina e maneiras segundo as Escrituras, ao passo que os primeiros manifestavam a superstição, a pompa e a arrogância do papado. O emissário de Roma exigiu que estas igrejas cristãs reconhecessem a supremacia do soberano pontífice. Os bretões mansamente replicaram que desejavam amar a todos os homens, mas que o papa não tinha direito à supremacia na igreja, e que eles poderiam prestar-lhe somente a submissão devida a todo seguidor de Cristo. Repetidas tentativas foram feitas para se conseguir sua adesão a Roma; mas esses humildes cristãos, espantados com o orgulho ostentado por seus emissários, firmemente replicavam que não conheciam outro mestre senão a Cristo. Revelou-se, então, o verdadeiro espírito do papado. Disse o chefe romano: "Se não receberdes irmãos que vos trazem paz, recebereis inimigos que vos trarão guerra. Se vos não unirdes conosco para mostrar aos saxões o caminho da vida, recebereis deles o golpe de morte." - História da Reforma do Século XVI, D'Aubigné. Não era isto simples ameaça. Guerra, intriga e engano foram empregados contra as testemunhas de uma fé bíblica, até que as igrejas da Bretanha foram destruídas ou obrigadas a submeter-se à autoridade do papa.
Em terras que ficavam além da jurisdição de Roma, existiram por muitos séculos corporações de cristãos que permaneceram quase inteiramente livres da corrupção papal. Estavam rodeados de pagãos e, no transcorrer dos séculos, foram afetados por seus erros; mas continuaram a considerar a Escritura Sagrada como a única regra de fé, aceitando muitas de suas verdades. Estes cristãos acreditavam na perpetuidade da lei de Deus e observavam o sábado do quarto mandamento. Igrejas que se mantinham nesta fé e prática, existiram na África Central e entre os arménios, na Ásia.
Mas dentre os que resistiram ao cerco cada vez mais apertado do poder papal, os valdenses ocuparam posição preeminente. A falsidade e corrupção papal encontraram a mais decidida resistência na própria terra em que o papa fixara a sede. Durante séculos as igrejas do Piemonte mantiveram-se independentes; mas afinal chegou o tempo em que Roma insistiu em submetê-las. Depois de lutas inúteis contra a tirania, os dirigentes destas igrejas reconheceram relutantemente a supremacia do poder a que o mundo todo parecia render homenagem. Alguns houve, entretanto, que se recusaram a ceder à autoridade do papa ou do prelado. Estavam decididos a manter sua fidelidade a Deus, e preservar a pureza e simplicidade de fé. Houve separação. Os que se apegaram à antiga fé, retiraram-se; alguns, abandonando os Alpes nativos, alçaram a bandeira da verdade em terras estrangeiras; outros se retraíram para os vales afastados e fortalezas das montanhas, e ali preservaram a liberdade de culto a Deus.
A fé que durante muitos séculos fora mantida e ensinada pelos cristãos valdenses, estava em assinalado contraste com as falsas doutrinas que Roma apresentava. Sua crença religiosa baseava-se na Palavra escrita de Deus - o verdadeiro documento religioso do cristianismo. Mas aqueles humildes camponeses, em seu obscuro retiro, excluídos do mundo e presos à labuta diária entre seus rebanhos e vinhedos, não haviam por si sós chegado à verdade em oposição aos dogmas e heresias da igreja apóstata. A fé que professavam não era nova. Sua crença religiosa era a herança de seus pais. Lutavam pela fé da igreja apostólica - a "fé que uma vez foi dada aos santos". Jud. 3. "A igreja no deserto" e não a orgulhosa hierarquia entronizada na grande capital do mundo, era a verdadeira igreja de Cristo, a depositária dos tesouros da verdade que Deus confiara a Seu povo para ser dada ao mundo.
Entre as principais causas que levaram a igreja verdadeira a separar-se da de Roma, estava o ódio desta ao sábado bíblico. Conforme fora predito pela profecia, o poder papal lançou a verdade por terra. A lei de Deus foi lançada ao pó, enquanto se exaltavam as tradições e costumes dos homens. As igrejas que estavam sob o governo do papado, foram logo compelidas a honrar o domingo como dia santo. No meio do erro e superstição que prevaleciam, muitos, mesmo dentre o verdadeiro povo de Deus, ficaram tão desorientados que ao mesmo tempo em que observavam o sábado, afastavam-se do trabalho também no domingo. Isso, porém, não satisfazia aos chefes papais. Exigiam não somente que fosse santificado o domingo, mas que o sábado fosse profanado; e com a mais violenta linguagem denunciavam os que ousavam honrá-lo. Era unicamente fugindo ao poder de Roma que alguém poderia em paz obedecer à lei de Deus.
Os valdenses foram os primeiros dentre os povos da Europa a obter a tradução das Sagradas Escrituras. Centenas de anos antes da Reforma, possuíam a Bíblia em manuscrito, na língua materna. Tinham a verdade incontaminada, e isto os tornava objeto especial do ódio e perseguição. Declaravam ser a Igreja de Roma a Babilónia apóstata do Apocalipse, e com perigo de vida erguiam-se para resistir a suas corrupções. Opressos pela prolongada perseguição, alguns comprometeram sua fé, cedendo pouco a pouco em seus princípios distintivos, enquanto outros sustentavam firme a verdade. Durante séculos de trevas e apostasia, houve alguns dentre os valdenses que negavam a supremacia de Roma, rejeitavam o culto às imagens como idolatria e guardavam o verdadeiro sábado. Sob as mais atrozes tempestades da oposição conservaram a fé. Perseguidos embora pela espada dos saboianos (França) e queimados pela fogueira romana, mantiveram-se sem hesitação ao lado da Palavra de Deus e de Sua honra.
Por trás dos elevados baluartes das montanhas - em todos os tempos refúgio dos perseguidos e oprimidos - os valdenses encontraram esconderijo. Ali, conservou-se a luz da verdade a arder por entre as trevas da Idade Média. Ali, durante mil anos, testemunhas da verdade mantiveram a antiga fé.
Deus providenciara para Seu povo um santuário de majestosa grandeza, de acordo com as extraordinárias verdades confiadas à sua guarda. Para os fiéis exilados, eram as montanhas um emblema da imutável justiça de Jeová. Apontavam eles a seus filhos as alturas sobranceiras, em sua imutável majestade, e falavam-lhes dAquele em quem não há mudança nem sombra de variação, cuja Palavra é tão perdurável como os montes eternos. Deus estabelecera firmemente as montanhas e as cingira de fortaleza; braço algum, a não ser o do Poder infinito, poderia movê-las do lugar. De igual maneira estabelecera Ele a Sua lei - fundamento de Seu governo no Céu e na Terra. O braço do homem poderia atingir a seus semelhantes e destruir-lhes a vida; mas esse braço seria tão impotente para desarraigar as montanhas de seu fundamento e precipitá-las no mar, como para mudar um preceito da lei de Jeová ou anular qualquer de Suas promessas aos que Lhe fazem a vontade. Na fidelidade para com a Sua lei, os servos de Deus deviam ser tão firmes como os outeiros imutáveis.
As montanhas que cingiam os fundos vales eram testemunhas constantes do poder criador de Deus e afirmação sempre infalível de Seu cuidado protetor. Esses peregrinos aprenderam a amar os símbolos silenciosos da presença de Jeová. Não condescendiam com murmurações por causa das dificuldades da sorte; nunca se sentiam abandonados na solidão das montanhas. Agradeciam a Deus por haver-lhes provido refúgio da ira e crueldade dos homens. Regozijavam-se diante dEle na liberdade de prestar culto. Muitas vezes, quando perseguidos pelos inimigos, a fortaleza das montanhas se provara ser defesa segura. De muitos rochedos elevados entoavam eles louvores a Deus e os exércitos de Roma não podiam fazer silenciar seus cânticos de ações de graças.
Pura, singela e fervorosa era a piedade desses seguidores de Cristo. Os princípios da verdade, avaliavam-nos eles acima de casas e terras, amigos, parentes e mesmo da própria vida. Semelhantes princípios ardorosamente procuravam eles gravar no coração dos jovens. Desde a mais tenra infância os jovens eram instruídos nas Escrituras, e ensinava-se-lhes a considerar santos os requisitos da lei de Deus. Sendo raros os exemplares das Escrituras Sagradas, eram suas preciosas palavras confiadas à memória. Muitos eram capazes de repetir longas porções tanto do Antigo como do Novo Testamento. Os pensamentos de Deus associavam-se ao sublime cenário da natureza e às humildes bênçãos da vida diária. Criancinhas aprendiam a olhar com gratidão a Deus como o Doador de toda mercê e conforto.
Os pais, ternos e afetuosos como eram, tão sabiamente amavam os filhos que não permitiam que se habituassem à condescendência própria. Esboçava-se diante deles uma vida de provações e dificuldades, talvez a morte de mártir. Eram ensinados desde a infância a suportar rudezas, a sujeitar-se ao domínio, e contudo a pensar e agir por si mesmos. Muito cedo eram ensinados a encarar responsabilidades, a serem precavidos no falar e a compreenderem a sabedoria do silêncio. Uma palavra indiscreta que deixassem cair no ouvido dos inimigos, poderia pôr em perigo não somente a vida do que falava, mas a de centenas de seus irmãos; pois, semelhantes a lobos à caça da presa, os inimigos da verdade perseguiam os que ousavam reclamar liberdade para a fé religiosa.
Os valdenses haviam sacrificado a prosperidade temporal por amor à verdade, e com paciência perseverante labutavam para ganhar o pão. Cada recanto de terra cultivável entre as montanhas era cuidadosamente aproveitado; fazia-se com que os vales e as encostas menos férteis das colinas também produzissem. A economia e a severa renúncia de si próprio formavam parte da educação que os filhos recebiam como seu único legado. Ensinava-se-lhes que Deus determinara fosse a vida uma disciplina e que suas necessidades poderiam ser supridas apenas mediante o trabalho pessoal, previdência, cuidado e fé. O processo era laborioso e fatigante, mas salutar, precisamente o de que o homem necessita em seu estado decaído - escola que Deus proveu para o seu ensino e desenvolvimento. Enquanto os jovens se habituavam ao trabalho e asperezas, a cultura do intelecto não era negligenciada. Ensinava-se-lhes que todas as suas capacidades pertenciam a Deus, e que deveriam todas ser aperfeiçoadas e desenvolvidas para o Seu serviço.
As igrejas valdenses, em sua pureza e simplicidade, assemelhavam-se à igreja dos tempos apostólicos. Rejeitando a supremacia do papa e prelados, mantinham a Escritura Sagrada como a única autoridade suprema, infalível. Seus pastores, diferentes dos altivos sacerdotes de Roma, seguiam o exemplo de seu Mestre que "veio não para ser servido, mas para servir". Alimentavam o rebanho de Deus, guiando-os às verdes pastagens e fontes vivas de Sua santa Palavra. Longe dos monumentos da pompa e orgulho humano, o povo congregava-se, não em igrejas suntuosas ou grandes catedrais, mas à sombra das montanhas nos vales alpinos, ou, em tempo de perigo, em alguma fortaleza rochosa, a fim de escutar as palavras da verdade proferidas pelos servos de Cristo. Os pastores não somente pregavam o evangelho, mas visitavam os doentes, doutrinavam as crianças, admoestavam aos que erravam e trabalhavam para resolver as questões e promover harmonia e amor fraternal. Em tempos de paz eram sustentados por ofertas voluntárias do povo; mas, como Paulo, o fabricante de tendas, cada qual aprendia um ofício ou profissão, mediante a qual, sendo necessário, proveria o sustento próprio.
De seus pastores recebiam os jovens instrução. Conquanto se desse atenção aos ramos dos conhecimentos gerais, fazia-se da Escritura Sagrada o estudo principal. Os evangelhos de Mateus e João eram confiados à memória, juntamente com muitas das epístolas. Também se ocupavam em copiar as Escrituras. Alguns manuscritos continham a Bíblia toda, outros apenas breves porções, a que algumas simples explicações do texto eram acrescentadas por aqueles que eram capazes de comentar as Escrituras. Assim se apresentavam os tesouros da verdade durante tanto tempo ocultos pelos que procuravam exaltar-se acima de Deus.
Mediante pacientes e incansáveis labores, por vezes nas profundas e escuras cavernas da Terra, à luz de archotes, eram copiadas as Escrituras Sagradas, versículo por versículo, capítulo por capítulo. Assim a obra prosseguia, resplandecendo, qual ouro puro, a vontade revelada de Deus; e quanto mais brilhante, clara e poderosa era por causa das provações que passavam por seu amor, apenas o poderiam compreender os que se achavam empenhados em obra semelhante. Anjos celestiais circundavam os fiéis obreiros.
Satanás incitara sacerdotes e prelados a enterrarem a Palavra da verdade sob a escória do erro, heresia e superstição; mas de modo maravilhosíssimo foi ela conservada incontaminada através de todos os séculos de trevas. Não trazia o cunho do homem, mas a impressão divina. Os homens se têm demonstrado incansáveis em seus esforços para obscurecer o claro e simples sentido das Escrituras, e fazê-las contradizerem seu próprio testemunho; porém, semelhante à arca sobre as profundas águas encapeladas, a Palavra de Deus leva de vencida as borrascas que a ameaçam de destruição. Assim como tem a mina ricos veios de ouro e prata ocultos por sob a superfície, de maneira que todos os que desejam descobrir os preciosos depósitos devem cavar, assim as Sagradas Escrituras têm tesouros de verdade que são revelados unicamente ao ardoroso, humilde e devoto pesquisador. Deus destinara a Bíblia a ser um compêndio para toda a humanidade, na infância, juventude e idade madura, devendo ser estudada através de todos os tempos. Deu Sua Palavra aos homens como revelação de Si mesmo. Cada nova verdade que se divisa é uma nova revelação do caráter de seu Autor. O estudo das Escrituras é o meio divinamente ordenado para levar o homem a mais íntima comunhão com seu Criador e dar-lhe mais claro conhecimento de Sua vontade. É o meio de comunicação entre Deus e o homem.
Conquanto os valdenses considerassem o temor do Senhor como o princípio da sabedoria, não eram cegos no tocante à importância do contato com o mundo, do conhecimento dos
homens e da vida ativa, para expandir o espírito e avivar as percepções. De suas escolas nas montanhas alguns dos jovens foram enviados a instituições de ensino nas cidades da França ou Itália, onde havia campo mais vasto para o estudo, pensamento e observação, do que nos Alpes nativos. Os jovens assim enviados estavam expostos à tentação, testemunhavam o vício, defrontavam-se com os astuciosos agentes de Satanás, que lhes queriam impor as mais subtis heresias e os mais perigosos enganos. Mas sua educação desde a meninice fora de molde a prepará-los para tudo isto.
Nas escolas aonde iam, não deveriam fazer confidentes a quem quer que fosse. Suas vestes eram preparadas de maneira a ocultar seu máximo tesouro - os preciosos manuscritos das Escrituras. A estes, fruto de meses e anos de labuta, levavam consigo e, sempre que o podiam fazer sem despertar suspeita, cautelosamente punham uma porção ao alcance daqueles cujo coração parecia aberto para receber a verdade. Desde os joelhos da mãe a juventude valdense havia sido educada com este propósito em vista; compreendiam o trabalho, e fielmente o executavam. Ganhavam-se conversos à verdadeira fé nessas instituições de ensino, e frequentemente se encontravam seus princípios a penetrar a escola toda; contudo os chefes papais não podiam pelo mais minucioso inquérito descobrir a fonte da chamada heresia corruptora.
O espírito de Cristo é espírito missionário. O primeiro impulso do coração regenerado é levar outros também ao Salvador. Tal foi o espírito dos cristãos valdenses. Compreendiam que Deus exigia mais deles do que simplesmente preservar a verdade em sua pureza, nas suas próprias igrejas; e que sobre eles repousava a solene responsabilidade de deixarem sua luz resplandecer aos que se achavam em trevas. Pelo forte poder da Palavra de Deus procuravam romper o cativeiro que Roma havia imposto.
Os ministros valdenses eram educados como missionários, exigindo-se primeiramente de cada um que tivesse a expectativa de entrar para o ministério, aquisição de experiência como evangelista. Cada um deveria servir três anos em algum campo missionário antes de assumir o encargo de uma igreja em seu país. Este serviço, exigindo logo de começo renúncia e sacrifício, era introdução apropriada à vida pastoral naqueles tempos que punham à prova a alma. Os jovens que recebiam a ordenação para o sagrado mister, viam diante de si, não a perspectiva de riquezas e glória terrestre, mas uma vida de trabalhos e perigo, e possivelmente o destino de mártir. Os missionários iam de dois em dois, como Jesus enviara Seus discípulos. Cada jovem tinha usualmente por companhia um homem de idade e experiência, achando-se aquele sob a orientação do companheiro, que ficava responsável por seu ensino, e a cuja instrução se esperava que seguisse. Estes coobreiros não estavam sempre juntos, mas muitas vezes se reuniam para orar e aconselhar-se, fortalecendo-se assim mutuamente na fé.
Tornar conhecido o objetivo de sua missão seria assegurar a derrota; ocultavam, portanto, cautelosamente seu verdadeiro caráter. Cada ministro possuía conhecimento de algum ofício ou profissão e os missionários prosseguiam na obra sob a aparência de vocação secular. Usualmente escolhiam a de mercador ou vendedor ambulante. "Levavam sedas, jóias e outros artigos, que naquele tempo não se compravam facilmente, a não ser em mercados distantes; e eram bem recebidos como negociantes onde teriam sido repelidos como missionários." - Wylie. Em todo o tempo seu coração se levantava a Deus rogando sabedoria a fim de apresentar um tesouro mais precioso do que o ouro ou jóias. Levavam secretamente consigo exemplares da Escritura Sagrada, no todo ou em parte; quando quer que se apresentasse oportunidade, chamavam a atenção dos fregueses para os manuscritos. Muitas vezes assim se despertava o interesse de ler a Palavra de Deus, e alguma porção era de bom grado deixada com os que a desejavam receber.
A obra destes missionários começava nas planícies e vales ao pé de suas próprias montanhas, mas estendia-se muito além destes limites. Descalços e com vestes singelas como eram as de seu Mestre, passavam por grande cidades e penetravam em longínquas terras. Por toda parte espalhavam a preciosa verdade. Surgiam igrejas em seu caminho e o sangue dos mártires testemunhava da verdade. O dia de Deus revelará rica colheita de almas enceleiradas pelos labores destes homens fiéis. Velada e silenciosa, a Palavra de Deus rompia caminho através da cristandade e tinha alegre acolhida nos lares e corações.
Para os valdenses não eram as Escrituras simplesmente o registo do trato de Deus para com os homens no passado e a revelação das responsabilidades e deveres do presente, mas o desvendar dos perigos e glórias do futuro. Acreditavam que o fim de todas as coisas não estava muito distante; e, estudando a Bíblia com oração e lágrimas, mais profundamente se impressionavam com suas preciosas declarações e com o dever de tornar conhecidas a outros as suas verdades salvadoras. Viam o plano da salvação claramente revelado nas páginas sagradas e encontravam conforto, esperança e paz crendo em Jesus. Ao iluminar-lhes a luz o entendimento e ao alegrar-lhes ela o coração, anelavam derramar seus raios sobre os que se achavam nas trevas do erro papal.
Viam que sob a direção do papa e sacerdotes, multidões em vão se esforçavam por obter perdão afligindo o corpo por causa do pecado da alma. Ensinados a confiar nas boas obras para se salvarem,

Dois Heróis da Idade Média – John Huss e Jerónimo

O Evangelho fora implantado na Boémia já no século IX. A Bíblia achava-se traduzida, e o culto público era celebrado na língua do povo. Mas, à medida que aumentava o poderio do papa, a Palavra de Deus se obscurecia. Gregório VII, que tomara a si o abater o orgulho dos reis, não tinha menos intenções de escravizar o povo, e de acordo com isto expediu uma bula proibindo que o culto público fosse dirigido na língua boémia. O papa declarava ser "agradável ao Onipotente que Seu culto fosse celebrado em língua desconhecida, e que muitos males e heresias haviam surgido por não se observar esta regra". - Wylie. Assim Roma decretava que a luz da Palavra de Deus se extinguisse e o povo fosse encerrado em trevas. O Céu havia provido outros fatores para a preservação da igreja. Muitos dos valdenses e albigenses, pela perseguição expulsos de seus lares na França, e Itália, foram à Boémia. Posto que não ousassem ensinar abertamente, zelosos trabalhavam em segredo. Assim se preservou a verdadeira fé de século em século.
Antes dos dias de Huss, houve na Boémia homens que se levantaram para condenar abertamente a corrupção na igreja e a dissolução do povo. Seus trabalhos despertaram interesse que se estendeu largamente. Suscitaram-se os temores da hierarquia e iniciou-se a perseguição contra os discípulos do evangelho.
Compelidos a fazer seu culto nas florestas e montanhas, davam-lhes caça os soldados, e muitos foram mortos. Depois de algum tempo se decretou que todos os que se afastassem do culto romano deviam ser queimados. Mas, enquanto os cristãos rendiam a vida, olhavam à frente para a vitória de sua causa. Um dos que "ensinavam que a salvação só se encontra pela fé no Salvador crucificado", declarou ao morrer: "A fúria dos inimigos da verdade agora prevalece contra nós, mas não será para sempre; levantar-se-á um dentre o povo comum, sem espada nem autoridade, e contra ele não poderão prevalecer." - Wylie. O tempo de Lutero estava ainda muito distante; mas já se erguia alguém, cujo testemunho contra Roma abalaria as nações.
João Huss era de humilde nascimento e cedo ficou órfão pela morte do pai. Sua piedosa mãe, considerando a educação e o temor de Deus como a mais valiosa das posses, procurou assegurar esta herança para o filho. Huss estudou na escola da província, passando depois para a Universidade de Praga, onde teve admissão gratuita como estudante pobre. Foi acompanhado na viagem por sua mãe; viúva e pobre, não possuía dádivas nem riquezas mundanas para conferir ao filho; mas, aproximando-se eles da grande cidade, ajoelhou-se ela ao lado do jovem sem pai, e invocou-lhe a bênção do Pai celestial. Pouco imaginara aquela mãe como deveria sua oração ser atendida.
Na Universidade, Huss logo se distinguiu pela sua incansável aplicação e rápidos progressos, enquanto a vida irrepreensível e modos afáveis e simpáticos lhe conquistaram estima geral. Era sincero adepto da igreja de Roma, e fervorosamente buscava as bênçãos espirituais que ela professa conferir. Na ocasião de um jubileu, foi à confissão, pagou as últimas poucas moedas de seus minguados recursos, e tomou parte nas procissões, a fim de poder participar da absolvição prometida. Depois de completar o curso colegial, entrou para o sacerdócio e, atingindo rapidamente à eminência, foi logo chamado à corte do rei. Tornou-se também professor e mais tarde reitor da Universidade em que recebera educação. Em poucos anos o humilde estudante, que de favor se educara, tornou-se o orgulho de seu país e seu nome teve fama em toda a Europa.
Foi, porém, em outro campo que Huss começou a obra da reforma. Vários anos após haver recebido a ordenação sacerdotal, foi nomeado pregador da capela de Belém. O fundador desta capela defendera, como assunto de grande importância, a pregação das Escrituras na língua do povo. Apesar da oposição de Roma a esta prática, ela não se interrompeu completamente na Boémia. Havia, porém, grande ignorância das Escrituras, e os piores vícios prevaleciam entre o povo de todas as classes. Estes males Huss denunciou largamente, apelando para a Palavra de Deus a fim de encarecer os princípios da verdade e pureza por ele pregados.
Um cidadão de Praga, Jerónimo, que depois se tornou intimamente ligado a Huss, trouxera consigo, ao voltar da Inglaterra, os escritos de Wycliffe. A rainha da Inglaterra, que se convertera aos ensinos de Wycliffe, era uma princesa boémia, e por sua influência as obras do reformador foram também amplamente divulgadas em seu país natal. Estas obras lera-as Huss com interesse; cria que seu autor era cristão sincero e inclinava-se a considerar favoravelmente as reformas que advogava. Huss, conquanto não o soubesse, entrara já em caminho que o levaria longe de Roma.
Por esse tempo chegaram a Praga dois estrangeiros da Inglaterra, homens de saber, que tinham recebido a luz, e haviam chegado para espalhá-la naquela terra distante. Começando com um ataque aberto à supremacia do papa, foram logo pelas autoridades levados a silenciar; mas, não estando dispostos a abandonar seu propósito, recorreram a outras medidas. Sendo artistas, bem como pregadores, prosseguiam pondo em prática a sua habilidade. Em local franqueado ao público pintaram dois quadros. Um representava a entrada de Cristo em Jerusalém, "manso, e assentado sobre uma jumenta" (Mat. 21:5), e seguido de Seus discípulos, descalços e com trajes gastos pelas viagens. O outro estampava uma procissão pontifical: o papa adornado com ricas vestes e tríplice coroa, montando cavalo, magnificamente adornado, precedido de trombeteiros, e seguido pelos cardeais e prelados em deslumbrante pompa.
Ali estava um sermão que prendeu a atenção de todas as classes. Multidões vieram contemplar os desenhos. Ninguém deixara de compreender a moral, e muitos ficaram profundamente

A Influência de um Bom Lar

Preeminente entre os que foram chamados para dirigir a igreja das trevas do papado à luz de uma fé mais pura, acha-se Martinho Lutero. Zeloso, ardente e dedicado, não conhecendo outro temor senão o de Deus, e não reconhecendo outro fundamento para a fé religiosa além das Escrituras Sagradas, Lutero foi o homem para o seu tempo; por meio dele Deus efetuou uma grande obra para a reforma da igreja e esclarecimento do mundo.
Como os primeiros arautos do evangelho, Lutero proveio das classes pobres. Seus primeiros anos se passaram no humilde lar de um camponês alemão. Pelo trabalho diário de mineiro que era, seu pai ganhava os meios para a sua educação. Ele o destinava a ser advogado; mas Deus tencionava fazer dele um construtor no grande templo que tão vagarosamente se vinha erigindo, através dos séculos. Dificuldades, privações e severa disciplina foram a escola na qual a Sabedoria infinita preparou Lutero para a importante missão de sua vida.
O pai de Lutero era homem de espírito forte e ativo, e de grande força de caráter, honesto, resoluto e correto. Era fiel às suas convicções de dever, fossem quais fossem as conseqüências. Seu genuíno bom senso levava-o a considerar com desconfiança a organização monástica. Ficou muito desgostoso quando Lutero, sem seu consentimento, entrou para o convento, só se reconciliando com o filho passados dois anos, e mesmo então suas opiniões permaneceram as mesmas.
Os pais de Lutero dispensavam grande cuidado à educação e ensino dos filhos. Esforçavam-se por instruí-los no conhecimento de Deus e prática das virtudes cristãs. Ouvida por seu filho, muitas vezes ascendia ao Céu a oração do pai, a fim de que o filho pudesse lembrar-se do nome do Senhor, e um dia auxiliar no avançamento de Sua verdade. Todas as vantagens para a cultura moral ou intelectual que sua vida de trabalhos lhes permitia gozar, aproveitavam-nas avidamente aqueles pais. Ardorosos e perseverantes eram seus esforços por preparar os filhos para uma vida piedosa e útil. Com sua firmeza e força de caráter, muitas vezes exerciam severidade excessiva; mas o próprio reformador, embora consciente de que em alguns aspectos haviam errado, encontrava em sua disciplina mais para aprovar do que condenar.
Na escola, para onde foi mandado com pouca idade, Lutero foi tratado com aspereza e mesmo violência. Tão grande era a pobreza de seus pais que, ao ir de casa para a escola noutra cidade, foi por algum tempo obrigado a ganhar o pão cantando de porta em porta, e muitas vezes passava fome. As tristes e supersticiosas ideias sobre religião, que então prevaleciam, enchiam-no de temor. À noite deitava-se com coração triste, olhando a tremer para o tenebroso futuro, e com um contínuo terror ao pensar em Deus como juiz severo e implacável, tirano cruel, em vez de bondoso Pai celestial.
Não obstante, sob tantos e tão grandes desalentos, Lutero avançou resolutamente para a elevada norma de excelência moral e intelectual que lhe atraía a alma. Tinha sede de saber, e seu feitio de espírito ardoroso e prático, levou-o a desejar o que é sólido e útil em vez do que é vistoso e superficial.
Quando, à idade de dezoito anos, entrou na Universidade de Erfurt, sua situação foi mais favorável e suas perspectivas mais brilhantes do que nos primeiros anos. Os pais, havendo pela economia e trabalho conseguido certo bem-estar, puderam prestar-lhe todo o auxílio necessário. E a influência de amigos judiciosos, diminuiu até certo ponto os efeitos sombrios de seu ensino anterior. Aplicou-se ao estudo dos melhores autores, entesourando diligentemente seus mais ponderados conceitos e fazendo